Ele havia chegado mais cedo que o normal com um estrondoso ramo de flores, que jaziam agora no centro da mesa, como uma linha de fronteira entre ambos. Tudo se tinha passado neste dia como ela havia desejado. Ele levantou-se cedo e preparou o pequeno almoço que lhe deixara na mesinha de cabeceira com um cartão. Saira para o trabalho e fizera uma reserva para essa noite de forma a assinalar o dia. Agora, chegado o momento que exigira, ela não conseguia perceber o que estava errado e procurava desesperadamente uma forma de enquadrar os sentimentos no contexto. Sentiu-se aliviada quando o empregado se abeirou da mesa com a ementa para anotar o pedido - uma trégua na batalha que travava consigo mesma.
"Que vais querer?" perguntou ele, obrigando-a a fitar os seus olhos pela primeira vez desde que se haviam sentado naquela mesa.
"E tu?" respondeu, não como uma simples pergunta mas como quem lança um desafio.
"Tanto faz. Escolhe tu, que eu como o mesmo." rematou desinteressado.
Ela escolheu o primeiro prato da lista, não por uma qualquer preferência mas porque não se sentia com forças para ler o resto ou, talvez, porque num acesso de coragem repentino, desejava acabar com aquela trégua o mais rapidamente possível e voltar ao íntimo do seu campo de batalha.
Era sexta-feira e, há precisamente uma semana, ela tinha ficado a saber que hoje não estariam juntos. Ele estaria fora, numa oportunidade de viagem há muito desejada que lhe havia sido proporcionada para esta altura. Ela ficara a saber nesse mesmo dia e, contra todas as expectativas, conseguira expressar um tímido e nada sincero "fico contente por ti".
À medida que este dia se aproximava ela assistiu aos preparativos, escutou os telefonemas, presenciou as combinações e conversas intermináveis referentes à viagem que o esperava; e habituou-se a vê-lo numa aura de alegria despreocupada. Sem que ela se apercebesse, as palavras que diariamente trocavam foram diminuindo. No espaço de apenas três dias as discussões brotavam pelo pormenor mais insignificante e multiplicavam-se pelos minutos das horas que passavam juntos.
Três dias foi quanto levou para que ela se tivesse arrependido daquele tímido e falso "fico contente por ti" com que recebera a notícia. Desde segunda-feira, passara os dias a imaginar formas de lhe dizer o que verdadeiramente sentia. Queria - precisava - desesperadamente de apagar aquela falsidade proferida e confessar-lhe a verdade intestina que a consumia a cada segundo de cada minuto de todas as horas de cada um dos últimos três dias.
Nessa noite ele chegou de telefone em punho e pousou a mala à entrada do corredor. Seguiu para o quarto onde trocou os sapatos pelos chinelos que ela lhe havia oferecido no 5º aniversário de casamento, havia precisamente um ano e 4 dias. Passou pela cozinha onde lhe dirigiu um aceno terno e dirigiu-se para a sala de refeições para, como habitualmente, colocar a mesa para o jantar. "Chegamos na 6ª à noite... as reservas estão tratadas... do aeroporto ao hotel são uns minutos de táxi..." ia dizendo alegremente despreocupado, enquanto punha a mesa.
"Vais na sexta?" atirou ela, procurando parecer despreocupada.
"Sim, já te tinha dito."
"Ah! Pensei que fosses só sábado" mentiu. "não imaginei que não estivesses cá no nosso aniversário!"
"Desculpa" atirou ele, da forma mais sincera que ela jamais lhe tinha ouvido.
"Desculpa?!" disse indignada "desculpa pede-se quando se chega atrasado ou quando se pisa alguém no comboio, não quando se toma uma decisão consciente. Se até aqui pensei que nem te havias lembrado, esse «desculpa» dito dessa forma, lá do alto, só me diz que te lembraste, sabias e tomaste uma decisão"
"Que querias que dissesse ou que fizesse?" disse ele, sem sequer entender o que ela pretendia "não queres que vá? ficas feliz se eu não for?" perguntou.
"Acho que não deves ir. Acho que é uma falta de respeito e de consideração nem sequer colocares a hipótese de não ires ou de me levares contigo. Acho uma tremenda obscenidade a facilidade com que ignorámos até agora a questão do nosso aniversário e dessa viagem coincidirem na mesma altura. Acho uma tremenda aberração o facto de quereres continuar a ignorar esse facto"
"Desculpa, mais uma vez" disse, visivelmente desorientado.
"Vai à merda. Se não tens mais nada para dizer, vai à merda... e à merda da viagem" atirou ela, por entre soluços de raiva e mágoa, levantando-se da mesa e dirigindo-se para o quarto donde não mais saiu nessa noite.
Os restantes dias foram de um silêncio reciproco: dela para lhe recordar a exigência de uma escolha; dele por não saber o que dizer ou que escolha fazer.
Fora ontem, quinta-feira, que ele lhe dissera que havia cancelado a viagem na véspera. Ela sentiu um estranho arrepio na espinha, que tomou por uma reacção de felicidade pela escolha que ele havia feito. Esta manhã ela havia tomado o pequeno almoço que ele lhe deixara na mesinha de cabeceira. Fora ainda no confortável aconchego dos lençois que lera o cartão que acompanhava o tabuleiro: "Hoje venho mais cedo, está pronta para sair às 19h00, beijos." Ela experimentou novamente a sensação daquele estranho arrepio na espinha, que tomou por uma reacção à surpresa que a esperaria nessa noite.
"Não comes?" perguntou ele, fazendo-a notar que o empregado já havia servido a refeição.
Ela abriu nova trégua na batalha que travava, serviu-se duma garfada e perguntou: "Estás feliz por estar aqui?"
"Claro minha querida, feliz aniversário" disse, ao mesmo tempo que levantava o copo e lhe propunha um brinde.
Ela levantou o copo de encontro ao dele fazendo com que se tocassem levemente e emitissem uma pequena vibração que ela sentiu apoderar-se dos seus dedos, da sua mão e, lentamente, de todo o seu corpo, revelando-lhe a natureza dos arrepios que sentira na vespera e nessa manhã. Um sentimento de terror apoderou-se de toda a sua mente.
Ela exigira e influenciara uma decisão e ao fazê-lo, retirou-lhe todo o valor. A uma decisão vazia quantas não se seguirão? A que preço? Como poderá saber e distinguir umas de outras? Como poderá ela, a partir de agora, distinguir entre um sacrifício e uma vontade genuína?
Ela não sabia, ainda não podia saber, que era uma verdadeira egoísta. Não sabia, ainda não podia saber, que a mais sedutora forma de ser amado é sê-lo por um verdadeiro egoísta. Este dará a quem verdadeiramente ama o melhor que tem: dar-se-á a si próprio. Um verdadeiro egoísta jamais se contentará com algo que não tenha merecido. Dar-se-á sem sacrifício, por interesse próprio e não se contentará com sacrifícios feitos em seu nome, mas apenas com uma vontade genuína de entrega.
Ela percebeu finalmente que nunca desejou que ele ficasse. Nunca desejou que ele não fosse. O que não a deixava respirar e viver era, na verdade, o desejo sufucante de que ele nunca tivesse desejado partir.
Um estrondo fê-la recompôr-se. O copo caira-lhe por entre os dedos e o seu conteúdo regava agora as flores no centro da mesa. Ela podia ver - ou imaginar - as flores a crescerem espontâneamente. Aquela linha de fronteira entre ambos crescia agora diante dela e a olhos vistos.
Subscrever:
Enviar feedback (Atom)
Sem comentários:
Enviar um comentário