Primeiro pensei, depois agi, também escrevi e até falei o que me parecia razoável e essencial nas questões que atravessam a Educação neste momento, e que são apenas uma parte da questão. Hoje vou apenas partilhar uma história que gostaria que chegasse a todos os professores, educadores e formadores.
“Eu... eu lamento estar tão atrasado, patrão, mas... mas eles não abriram o jogo até ao último minuto... só mesmo quando estava prestes a começar... Chamaram-me para uma... uma reunião estratégica... estava lá um homem que era delegado do... do Concelho de Unificação... era um fantoche do director-geral... que por sua vez é um fantoche nas mãos do secretário de estado... O que eles queriam de mim era... eles queriam que eu assinasse uma série de passes... para que alguns dos rufias pudessem entrar... para que pudessem iniciar confrontos lá dentro e cá fora ao mesmo tempo... para parecer que eram mesmo os nossos trabalhadores... eu recusei assinar os passes.”
“Recusaste? Depois de eles terem aberto o jogo?!”
“Mas... com certeza, patrão... acharia que eu alinhava nesse tipo de jogo?”
“Não, rapaz, não. Claro que não, só que...“
“O quê?”
“Arriscaste o pescoço.”
“Mas tinha de ser!... Não os podia deixar destruir a fábrica, podia?... Por quanto tempo mais podia eu continuar a esconder-me? Até que lhe cortassem o pescoço a si, patrão?... E como poderia eu salvar o meu pescoço se fosse à custa do seu?... Percebe, não percebe patrão?”
Ele acenou, percebia. E enquanto o rapaz lhe descrevia a forma como fugiu da reunião, como procurou pelo encarregado para o avisar, como descobriu que os telefones haviam sido cortados ao tentar ligar para sua casa, como correu para o carro para ir ao seu encontro, ele percebeu muito mais. Percebeu que o rapaz era agora um homem inteiro, bem diferente daquele fiscal que lhe havia sido imposto na fábrica por uma alínea de um artigo de entre os milhares de documentos, directivas, regulamentos e leis do Concelho de Unificação e do governo.
“Mas eles devem ter-me seguido e... foi quando dispararam... no parque de estacionamento... e só me lembro de cair... quando abri os olhos... eles tinham-me lançado lá em baixo... no rio”
“No rio?! Lá em baixo?!” disse o patrão, olhando para os 200 metros de ravina que os separavam da margem.
O rapaz acenou e olhou vagamente na direcção da ravina “Sim... lá em baixo mas... mas então comecei a trepar... eu queria... eu tinha... tinha de sobreviver o tempo suficiente para contar a alguém... que lhe contasse a si...” Com esforço, o rapaz endireitou um pouco a cabeça e olhou-o nos olhos com um renovado orgulho, “patrão, é esta a sensação de... de querer muito uma coisa... de querer algo desesperadamente e... fazê-lo?”
“Sim rapaz, é esta a sensação.” Ele sabia que o imberbe fiscal tinha aprendido a admirá-lo e às suas fábricas por, diariamente, ter visto, convivido e conhecido a verdade. Mas ficou surpreso como, em apenas um ano, o fiscal se havia tornado num homem capaz de sacrificar a sua vida por alguém que lhe havia sido apontado como um ganancioso capitalista e por uma fábrica proclamada como um antro de escravidão e exploração. “Mas, rapaz, ainda não acabou. Tens de aguentar até que eu te leve a um médico”
O rapaz abanou a cabeça. “Não... eu sei que acabou... não adianta enganar-me a mim próprio... estou acabado”. Depois, como se recordasse a sua vida antes da fábrica, acrescentou “Que é que importa, patrão?... o homem é apenas matéria... orgânica... química... a morte de um homem não faz... não faz mais diferença que... que a morte de um animal.”
“Sabes muito mais do que isso” disse o patrão.
“Sim... acho que aprendi” sussurrou. “Eu sei... as tretas que nos ensinaram... tudo o que disseram... a vida ou... a morte... que é tudo relativo... que não faz diferença...” Parou e recompôs a cara com um sorriso sofrido. “Mas para mim faz.... e talvez mesmo para os animais também... só que... eles dizem que não há valores só... só hábitos sociais... que o homem não interessa... que a sociedade é mais importante... o bem comum... não há valores absolutos...”
O patrão sorriu de forma tranquilizadora, deixando-o saber que reconhecia o quanto aquele fiscal tinha aprendido e o quanto havia mudado.
Então os olhos do rapaz, agora homem, ganharam uma nova expressão, uma nova serenidade, “eu gostaria tanto de viver... patrão... meu Deus como gostaria... não porque esteja a morrer... mas porque descobri... agora... o que significa viver... engraçado, patrão... sabe quando é que aprendi?... na sala... quando arrisquei o pescoço... quando os mandei a todos à merda... Há... há tantas coisas que gostaria de ter aprendido mais cedo mas... não vale a pena... lamentar... chorar sobre o leite derramado.” Olhou para o peito e antes de fechar os olhos acrescentou “Leite ou... sangue...”
“Ouve rapaz” disse o patrão abanando-o “quero que vivas”. Carregando-o nos braços gritou “aguenta-te António”.
“António?!” Disse o rapaz, ouvindo o patrão pronunciar o seu nome pela primeira vez desde que havia sido enviado para a fábrica há um ano, “já não sou o «comissário»... o «relativo»?” perguntou orgulhoso.
“Não. Já não. Agora és uns perfeito absoluto, e tu sabe-lo”
“Sim, eu sei” disse sem gaguejar “e conheço mais absolutos. Isto é um!” Afirmou, apontando para a ferida no seu peito. “Isto é um absoluto, não é?” E prosseguiu como se as palavras fossem uma anestesia contra a dor “E que os homens não podem viver se... se filhos da puta como... como aqueles do governo... se safam com coisas como... como o que se está a passar aqui hoje... se tudo se transformar numa farsa... em que nada é real... os homens não podem viver assim... isso é um absoluto, não é?”
“É António. Isso é um absoluto” e encostou os lábios na testa do rapaz, como quem beija um filho, com a solenidade de uma despedida.
“Patrão, eu... gosto de si...” e fechou os olhos pela ultima vez.
Ele caminhou e carregou-o nos braços como se essa fosse a forma de prestar uma homenagem, um último tributo, à vida – ao homem – que se extinguiu nos seus braços. Caminhou invadido por uma raiva intensa demais para identificar, uma enorme pressão interior: era o desejo de matar.
O desejo não era dirigido aos rufias anónimos que haviam disparado, nem aos burocratas que haviam contratado esses rufias, mas aos professores daquele rapaz que o haviam entregue, desarmado, à mercê de todas as armas. Era dirigido aos suaves e seguros assassinos das escolas e universidades que, incompetentes para responder às questões da demanda pela Razão, tiram prazer em amputar as jovens mentes que lhes são confiadas.
Algures, pensou ele, estava a mãe daquele rapaz, que tremeu de preocupação ao ver os seus primeiros passos, enquanto o ensinava a caminhar; que mediu cuidadosamente as refeições, enquanto o alimentava; que seguiu à risca as indicações médicas e científicas na sua dieta e higiene, protegendo aquele corpo que ele carregava agora moribundo. Uma mãe que o havia de enviar para ser transformado num neurótico torturado, por homens que lhe ensinaram que ele não tinha mente e que nunca deveria tentar pensar. Tivesse ela recusado alimentação àquela criança, pensou ele, ou tivesse misturado veneno na sua comida, e teria sido bem mais simples e menos fatal.
Ele pensou em todas as espécies que ensinam e treinam os seus jovens na arte da sobrevivência – os gatos que ensinam as crias a caçar, as aves que se esforçam sem reservas para ensinar os pequenos seres a voar – e no entanto o Homem, cujo meio de sobrevivência é a mente, não só falha em ensinar as crianças a pensar, como dedica a educação da criança ao propósito da destruição do seu cérebro, a convencê-las de que o pensamento é fútil e perverso, antes mesmo que elas comecem a pensar.
Da primeira palavra dirigida às crianças até à última, é como uma série de pequenos choques destinados a pararem um motor, a sabotar a energia das suas consciências. “Não faças tantas perguntas!”; “Quem és tu para pensar?”; “É assim porque eu digo!”; “Não discutas, obedece!”; “Não tentes entender, acredita!”; “Não sejas rebelde, adapta-te”; “Não dês nas vistas nem sobressaias, integra-te”; “Não reivindiques, compromete-te”; “O coração é mais importante do que a cabeça”; “Que é que tu sabes? Ouve mas é os teus pais”; “Que é que tu sabes? A sociedade sabe o que é melhor para ti”; “Quem és tu para protestar? Todos os valores são relativos”; “Quem és tu para quereres escapar da bala de um rufia ou da agressão de um burocrata? Isso é apenas uma perda pessoal, o bem comum é mais importante”
Os homens estremeceriam, pensou ele, se vissem uma ave arrancar as penas das asas das suas crias, e depois as encaminhasse para fora do ninho numa luta pela sobrevivência, no entanto é isso que eles fazem às suas crianças.
Armado apenas com frases vazias e sem significado, este rapaz foi lançado na luta pela existência, caminhou inseguro, tacteou na escuridão, através de um breve e condenado esforço, gritou o seu indignado e perplexo protesto, e pereceu na sua primeira tentativa de levantar voo com as suas asas mutiladas.
Mas existiu outrora um tipo diferente de professores, pensou ele, que moldaram os homens que construíram este país; ele pensou que as mães se deveriam ajoelhar e procurar esses homens e mulheres, encontrá-los e suplicar-lhes que regressassem.
Ele passou os portões de entrada na sua fábrica sem dar conta dos guardas que o deixaram entrar, estarrecidos com a expressão que levava na cara e com o fardo que carregava nos braços; ele não parou para ouvir o que diziam, enquanto apontavam para os tumultos à distância; ele prosseguiu a sua lenta e solene marcha em direcção à luz que lhe indicava a porta do edifício da enfermaria.
Ele entrou na sala iluminada, cheia de homens, pensos ensanguentados e o cheiro de anti-sépticos; ele depositou o seu fardo numa marquesa, sem explicar nada a ninguém, e saiu a porta sem olhar para trás.
Ele caminhou na direcção do edifício principal, subiu as escadas que o levavam ao seu gabinete, à sua secretária, àquilo que ainda restava do seu mundo e parou, sem se sentar. Afastou a cadeira como quem afasta um último amigo, num gesto próprio de quem afasta algo que o impede de tomar uma derradeira decisão; ele abriu a gaveta, retirou o revolver e ajoelhou-se no lugar onde ao longo de 20 anos tinha criado, da sua cadeira, da sua mente, da sua capacidade, o maior império industrial que alguma vez existira.
Reuniu toda a sua raiva num último fôlego e gritou bem alto não como uma súplica, mas como uma ordem emitida em nome de todas as mães deste mundo: “VOLTEM! Onde quer que estejam, voltem.”.
Levantou-se num movimento enérgico e, de arma em punho, apressou-se ao pátio para se juntar aos operários decidido a lutar com eles pelo direito de reconstruir o seu mundo, com a mesma determinação de há 20 anos. A diferença para então é que o fazia agora como um selvagem, com a sua arma e não com a sua mente.
Esta história foi inspirada e adaptada, pelo meu punho, de um trecho do romance “Atlas Shrugged” . Ela é dedicada a todos os que de alguma forma lidam com as novas gerações e com a sua formação. A todos rogo para que nunca se esqueçam de que seja qual for o “sistema”, as “leis” ou as “regras”, serão sempre as pessoas e as mentes que servem a educação. Serão sempre as vossas mentes, decisões, atitudes e acções, a definir a natureza daqueles que educam. A todos peço que voltem!
quinta-feira, 12 de fevereiro de 2009
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