domingo, 13 de setembro de 2009

A natureza do poder.

O liberalismo não é uma filosofia construtivista, e é bom que aqueles que se reclamam liberais não o esqueçam, na eventualidade de entenderem o que isto quer dizer.


A generalidade dos leitores poderia pensar que esta frase foi da autoria de um defensor do colectivismo, mas não foi. É da autoria de Rui A. no Portugal Comtemporâneo, e vem no seguimento deste post e deste comentário n'O Insurgente.

Como não entendi o que aquilo queria dizer, continuei a ler, contente por não me considerar um "liberal":

O liberalismo é, sim, uma filosofia política, mas no sentido inverso daquele: só pode ser utilizada de baixo para cima, isto é, imposta aos governantes pelos governados, e não por estes àqueles (...). Isto pela razão simples de que o liberalismo é uma filosofia de contenção e ordenação do poder político, em benefício do aumento do poder civil, isto é, da liberdade individual. É um instrumento para a contenção do estado e do seu poder, e não o inverso.


Mais contente fiquei por não ser um "liberal". Se o que aqui se expressa define os "liberais" per se, estes são uma contradição metafísica, logo uma impossibilidade prática.

Ou se defende o principio medieval do direito divino dos reis, ou se reconhece não existir nenhuma entidade colectiva (p.e. governantes) que possua direitos próprios além da soma dos direitos individuais dos seus membros (p.e. governados). Os governados são a origem de todo e qualquer poder dos governantes, por delegação. Não há "poder civil" e "poder político", apenas poder legitimo e poder ilegitimo. Poder equivale a "ter capacidade". Toda a capacidade obtida através da Razão é legitima e moral; assim como toda a capacidade obtida através da força ou da fraude é uma aberração imoral e um atentado aos direitos humanos. Não há tal coisa como "meia-liberdade" nem meia-escravatura. Ou se é livre ou se é escravo. A liberdade individual não se aumenta: é um absoluto que ou se defende ou se compromete.

Convém esclarecer que o liberalismo é uma ideia por si só (uma filosofia per se) e que o seu epíteto de "filosofia política" adveio apenas com a aplicação dos seus príncipios na organização política da sociedade projectada por Lock.

Em termos genéricos o liberalismo advoga a "liberdade" mas no plano estritamente político só pode significar uma coisa e nada mais: liberdade do poder do estado, liberdade do poder coercivo do estado. A expressão económica deste principio é o capitalismo. O laissez-faire (a aplicação política do liberalismo) é simplesmente o sistema mais construtivo que o homem já conheceu, e a história demonstra-o. Mas este detalhe não é fruto do acaso e, falhando a identificação das causas pode levar a afirmações dubias como:

Ora, quem entender um pouco sobre o que é o poder (sugere-se a leitura do Du Pouvoir, de Jouvenel), não ignora que a sua natureza é a expansão.


Apesar de verdadeira, uma expressão largada assim pode ser traiçoeira, pelas lacunas que deixa implícitas. Dá a ideia de que tanto o poder como a sua expansão são maus por si só. Regra geral, estas expressões servem apenas para dotar os colectivistas de uma maior consistência.

Cada poder tem a sua origem própria e é esta origem que determina a sua moralidade (se é bom ou mau) e o alcance da sua aplicação. A expansão de poderes morais é desejável, ao passo que relativamente aos poderes imorais outra coisa não se possa contrapôr do que uma total intransigência na sua abolição. Um poder imoral é um poder ilegítimo.

Analisemos e comparemos dois poderes hoje tão badalados: o político e o económico. O poder político advém da força (p.e. coação por via de lei). O poder económico, numa sociedade puramente capitalista, só pode ter uma origem: a capacidade e genialidade da mente humana e o esforço dos produtores. O poder pela coação é uma imoralidade que convém conter. O poder pela eficiência e pela capacidade é a manifestação da capacidade humana cujo reconhecimento constitui uma obrigação moral.

Numa sociedade puramente capitalista a natureza do poder do estado tem de estar bem identificada, e as regras para a sua aplicação claramente definidas. Esse poder, sendo coercivo, deriva da delegação do direito de legitima defesa dos cidadão no estado. A aplicação deste poder é explícita e claramente limitada pela sua própria natureza: legitima defesa. Assim, o estado capitalista é o monopolista no uso da força e pode apenas aplicá-la contra quem iniciou o seu uso. O direito de legitima defesa é a unica forma de expressão coerciva com legitimidade moral.

Identificando a natureza do poder, identifica-se também o problema dos "liberais". Escreve Rui A.

É por isso que os liberais desconfiam da política, dos políticos, dos governantes e do estado. Por uma questão de princípio, querê-mo-los com poderes e competências muito reduzidos, isto é, com a menor possibilidade que for possível deles prejudicarem as nossas vidas.


A questão de príncipio não é um estado com poderes e competências reduzidos para minimizar o prejuizo; mas antes um estado que tenha delegados em si os poderes exclusivamente próprios do estado, com regras objectivas de aplicação, para garantir o primeiro de todos os direitos do homem: o direito de cada um à sua própria vida.

Este é o erro que está na origem de escritos, por parte de supostos "liberais", tais como:

(...)Os partidos políticos são, como é sabido, instrumentos para a conquista democrática do poder do estado. Têm ideias, sem dúvida, e distinguem-se mesmo por algumas delas. Infelizmente, são cada vez mais iguais, ao ponto de haver quem não consiga discernir com clareza, nos dias que correm, as diferenças entre esquerda e direita


Na próxima vez que ouvirem alguém colocar a questão em termos de "esquerda" ou "direita", o que verdadeiramente está implícito na pergunta é: este ou aquele tipo de ditadura. Uma resposta nestes termos implica, antes de qualquer outra coisa, a obliteração da liberdade.

7 comentários:

  1. Caro MC,

    O seu erro consiste nisto:

    "Toda a capacidade obtida através da Razão é legitima e moral"

    Esta fórmula está esgotada desde o Iluminismo. A "Razão", seja lá o que isso possa ser, não é o fundamento de nenhum poder. Apenas dos poderes totalitários, que precisam de fundamento, como nos ensina a História.

    Quanto ao construtivismo em política, peço-lhe desculpa pelo atrevimento de recordar o muito que Hayek e Popper, mais o primeiro do que o segundo, escreveram sobre o assunto.

    Saudações cordiais,

    RA

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  2. RA:

    A Razão é a faculdade exclusivamente humana (não possuida por qualquer outra forma de vida) responsável pela integração e percepção da realidade. É o único meio Humano de aquisição de conhecimento, na medida em que o Homem é um ser racional e deve viver como tal.

    Este facto implica:

    1. A realidade é para ser percepcionada e não criada ou inventada.

    2. A Razão é o meio de aquisição de poder (capacidade) e não o seu fundamento.

    3. O único fundamento do poder (capacidade) são os direitos naturais do homem (individuo).

    Ou temos uma interpretação diferente do que escrevi no artigo ou se há aqui algum erro ele está por ser demonstrado. Talvez seja uma das únicas características que possuo do "construtivismo" (ou construcionismo, melhor dizendo) que é aprender pelo erro, desde que o mesmo seja demonstrado.

    Não sou "liberal" nem "construtivista" e não acho que uns devam ser outros. Ambos falham em identificar correctamente a origem e o fundamento moral para as suas próprias doutrinas (o Homem, a Razão e a Realidade) e acabam por se tentar justificar nos termos dos seus mais acérrimos adversários o que, naturalmente, os condena a eles e a todos nós.

    Apesar de a subscrever na generalidade, não conheço a obra de Hayek em pormenor (e ainda menos na area do construtivismo político) mas, com forte reserva intelectual, arriscaria dizer o seguinte:

    Considerando que o "construtivismo" se auto-apresentou como alternativa ao "racionalismo clássico" e que esta foi de longe a escola que mais se aproximou da realidade objectiva e da natureza humana (sem no entanto lá ter chegado), o facto do "liberalismo" não ser "construtivista" é positivo.

    Tal facto não anula no entanto o profundo prejuízo que os "liberais" auto-infligem aos seus supostos intentos quando aceitam premissas como a de que a racionalidade está esgotada desde o iluminismo (excepto na sua qualificação como "fundamento" - e não meio de aquisição - de poder).

    PS:

    1. Não sendo conhecedor apto do "construtivismo" (a única referência - e vaga - que conhecia antes desta discussão era a teoria construtivista do conhecimento ou construcionismo) o pouco que sei permite-me concordar com a frase que escolhi para ponto de partida do artigo, ou seja: o liberalismo não é uma filosofia construtivista. A causa para a necessidade do artigo foi antes a de identificar os erros sobre os quais acentam a suposta defesa da liberdade individual e que mais não fazem do que a prejudicar, não raras vezes mais que os seus supostos inimigos.

    2. Em relação ao construtivismo posso estar a interpretar erradamente alguns dos conceitos. Se achar que a discussão merece, também eu ficarei mais rico se achar por bem fornecê-los.

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  3. Caro MC,

    A abordagem do construtivismo feita por Hayek ocupou larga parte de sua obra e do seu liberalismo. Para ele e para a generalidade dos liberais clássicos o construtivismo é uma teoria social e política segundo a qual a ordem social pode ser construida e orientada no sentido pretendido pelo decisor político. Esta teoria funda-se no racionalismo cartesiano, na velha teoria da "verdade evidente" que sustentou o ilumonismo e continua a sustentar a maior parte das ideologias. Ela é mais forte no socialismo, que, como Popper explicou, se funda numa perspectiva historicista do curso da história e da evolução social, ela mesma uma forma de construtivismo. Por isso lhe sugeri estes dois autores, porque me pareceu que você não conhecia ainda esta abordagem que é, a meu ver, o que fundamenta toda a teoria liberal clássica. Isto porque o paradigma da "mão invisível", isto é, da ordem social espontânea, sustenta-se num pessimismo epistemológico segundo o qual todo o conhecimento humano é naturalmente muito limitado, e não o deixa de ser pelo facto de ser eventualmente utilizado por quem nos governa. Pelo contrário, uma decisão política conta invariavelmente com um sem número de comportamentos individuais que a podem invalidar. Daí o fracasso da planificação e da generalidade das políticas intervencionistas, sempre dotadas de objectivos nobilíssimos, mas invariavelmente muito aquém deles nos resultados. Quando não, como sucedeu com a planificação socialista, obtendo efeitos inversos - de miséria e pobreza - aos pretendidos. A teoria da ordenação espontânea da sociedade, por contraposição à teoria da sociedade construída pelo poder político, distinguem o liberalismo clássico dos diversos construtivismos sociais e políticos. É este o sentido deste conceito, segundo o liberalismo.

    Saudações cordiais,

    RA

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  4. Grato.

    Por "Hayek e o construtivismo político" refere-se portanto à teoria da "ordem espontânea" que constitui uma critica ao racionalismo CARTESIANO(base do construtivismo).

    Isso não esgota (para usar a sua expressão) o racionalismo.

    O falha foi a má fundamentação MORAL do racionalismo clássico. Foi essa falha que o direccionou erradamente e que permitiu a gradual penetração dos seus críticos e à destruição intelectual do liberalismo clássico.

    Basta ver os argumentos pseudo-empíricos dos pseudo-intelectuais colectivistas.

    Para dar exmplo prático, a questão da racionalidade perfeita ou da informação completa (ou falta de) usada como argumento para a necessidade de regulamentação.

    Em nome duma coisa que não existe (p.e. omnipotência e omniciência humanas), combate-se o sistema que promove a procura de informação e Razão.

    O Laissez-faire é perfeito, não porque a informação seja perfeita ou porque o homem seja omnisciente, mas porque é o único sistema que PROMOVE a busca de informação e Razão.

    É o que considero ser a falha de fundamento dos liberais.

    O racionalismo deve basear-se MORALMENTE na defesa do individuo e não da sociedade. A sociedade mais não é que a soma de todos os indivíduos.

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  5. http://opaoearazao.blogspot.com/2009/09/hayek-e-razao.html

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  6. Não discordo, no essencial, do teor do seu último comentário.

    Todavia, não pense que o liberalismo clássico se afasta necessariamente da razão. Certamente que não. Ele distancia-se do racionalismo cartesiano aplicado à política, mas está longe de se afastar do racionalismo humanista. Nem podia ser de outro modo, para uma filosofia que parte do individualismo. Para o que se adverte é para os limites naturais da razão humana e do conhecimento, nomeadamente quando inversamente fundamentam ideologias.

    De resto, todos os liberais clássicos são humanistas e necessariamente racionalistas. Encontra, até, a exaltação da razão (a meu ver um pouco excessiva e susceptível de alguns equívocos) em autores como a Rand e o Rothbard, como Mises e, se bem lido, inevitavelmente em Hayek. É nessa medida, para o liberalismo clássico, mais importante considerar o paradigma do "princípio da impotência", do que qualquer crítica da razão humana.

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  7. Caro Rui,

    "Todavia, não pense que o liberalismo clássico se afasta necessariamente da razão."

    A esse respeito, convido-o a ler o post "Hayek e a Razão", d~irectamente derivado desta nossa conversa.

    Em relação ao parentesis "a meu ver um pouco excessiva e susceptível de alguns equívocos" é matéria que um dia gostaria de ver desenvolvida pois acho que alguns "equivocos" haverá...

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